Apreciem.
E eis que, finalmente, o governo resolveu fazer uma PEC em benefício de domésticas
e babás. 2013 e só agora as domésticas, de fato, são consideradas trabalhadoras
com direitos tão importantes como aqueles que eu, você e seu colega que
trabalho com vínculo CLT desde uns 16 anos têm (18 se você tiver uma família um
pouquinho mais abastada). A importância desta PEC é maior do que ela
aparentemente tem, embora as inúmeras reportagens exibidas por ai não tenham
dito isso (pausa pra dizer que nojo eu sinto de gente que vai dar a cara a tapa
na TV pra dizer pro repórter que “agora está difícil ter doméstica”).
A nova PEC influencia a educação dos nossos jovens. Jovens que até então
foram educados por babás. Jovens que desde bebês tiveram suas fraldas trocadas
por babás e domésticas que faziam isso a troco de um pequeno salário sem
carteira assinada, seguro-desemprego, PIS e FGTS. Agora, papais e mamães ou
irão ter que trabalhar muito para poder pagar as babás de suas crianças ou irão
ter que fazer como a grande maioria da população faz: matricular o rebento em
uma escolinha, trabalhar e cuidar da criança sozinhos à noite e aos finais de
semana/feriados. Começa aqui o pânico de muitos pais e mães classe média:
cuidar dos próprios filhos (porque eles geraram e pariram, mas eles não podem
trocar fraldas e ajudar na hora da lição). Estou me coçando para daqui alguns
meses dar uma voltinha na zona sul e ver menos gente vestida de branco com
crianças em parques, clubes e shoppings. E mais madames e engravatados se
atolando na areia do parquinho cheia de mijo de gato.
O pouco, quase nenhum, convívio com os pais e mães que nossas crianças
tiveram certamente influenciarão no comportamento de nossos futuros jovens. Ou
você vai dizer que não conhece nenhum playboy que vive fazendo presepadas para
chamar a atenção dos pais? Jovens criados sem limites, sem carinho, sem normas,
foram ontem crianças que à menor manha ou chororô tiveram pais que cediam ou
chamavam a babá – que tantas vezes já estava lá, repousando em seu enorme
quartinho 3x3 onde mal cabe uma cama.
Não resisto. Preciso falar: você já pensou em quem cuida dos filhos das
babás e domésticas que dormem na casa de seus “patrões”? Ela não tem condições
financeiras de pagar uma outra babá para cuidar dos seus filhos, como você já
sabe. E, então, o que vai acontecer é: essas crianças serão criadas num misto
de rua + escolas públicas ruins + avós. Com sorte, a doméstica/babá terá uma
mãe aposentada gozando de boa saúde e com condições de ficar com as crianças no
momento em que elas não estão naquela escola pública de péssima qualidade. E,
caso você ainda não tenha entendido: essas crianças menos favorecidas
financeiramente perdem suas mães para as crianças mais favorecidas. Mas e os
finais de semana? E os feriados? Bom, quem já andou em um shopping zona sul já
deve ter visto o combo “casal classe média andando com suas roupas de grife +
atrás babá vestida de branco com bebê no colo”. Você vai almoçar no shopping
domingo e vê essa cena. E eu te pergunto: é domingo e cadê a babá que não está
em casa vendo “Turma do Didi” com o próprio filho? Bem, você já deve ter
entendido a resposta.

Mas ai você vai dizer “o que tem a ver uma coisa com a outra?”. Eu acho
que é sua obrigação saber, mas nem sempre a ficha cai, então é melhor ser bem
explícita. Amigos, as crianças que não são criadas pelas suas mães que são
babás/domésticas, que dormem em seus empregos, que geralmente recebem um dia de
folga às segundas-feiras (porque final de semana os “patrões” precisam
descansar e alguém precisa calar a criança!), bem, essas crianças aí deixam de receber carinho, amor e,
principalmente, educação. E ai o que vai acontecer é: a criança vai sendo criada
na rua, na casa da tia, da vizinha, da avó. Recebe influências de todos os
lados e não tem uma mãe presente para corrigir à noite aquele palavrão novo que
ele aprendeu no colégio, como a minha mãe teve a felicidade de fazer comigo.
Não tem mãe para ajudar no para-casa. Não tem a quem correr quando sofrer
aquele bullying. E aí essa criança
vai crescer e vai virar um adolescente, que vai se cansar de ver a mãe
trabalhando dia e noite para sustentá-lo. Mas, ironicamente, a mãe trabalha de
sol a sol e continua não tendo condições de dar a ela aquele brinquedo que ele
viu no comercial. Aquela roupa de marca. E os brinquedos e as roupas que ele
tem são sempre as sobras que os “patrões”, tão bonzinhos, doam (quando a
criança deles já não quer mais, é claro).
Quem já leu “Falcão: meninos do tráfico”, do MV Bill e do Celso Athayde,
sabe: a maior queixa de crianças entre 10 e 14 anos no livro são justamente
disso que eu disse acima. Eles sempre ficam com as sobras dos filhos das
patroas. A sobra de roupa, de brinquedo, de afeto e de tempo. A eles, só resta
isso: as sobras. O salário disso é a violência. A ilusão de querer ajudar a mãe
que trabalhou anos luz na vida, mas não vai conseguir aposentar. A ilusão de
ajudar a mãe que quer sair do emprego, mas não vai ter FGTS e seguro-desemprego
para ajudar. E, nessa ilusão, vai entrar para o mundo do tráfico, ganhar um
dinheiro rápido, sujo e violento. E as babás e domésticas da classe média vão
perder seus filhos para a rua.
Os filhos da nossa classe média terão um pouco mais de sorte. Vão
sobreviver. E, veja bem, eu disse sobreviver. Isso não quer dizer que serão
plenos e felizes quando adultos. É bem capaz que na ausência do carinho dos
pais, tempo e atenção, cresçam frustrados. Sem o entendimento de limites e
nãos, vão ser adultos babacas que xingam no trânsito, arrancam braços de
ciclistas porque acabaram de sair da boate em plena madrugada de domingo,
idiotas que chegam atrasados no trabalho e acham que o chefe não pode lhes
chamar a atenção. Completos babacas sem nenhum limite e noção da realidade.
A nova PEC, amigos, quer dizer muita coisa. Quer dizer que, finalmente,
domésticas e babás são trabalhadores como eu e você. São gente como a gente. Têm
salário, FGTS e horários para chegar e sair do emprego. E, finalmente, vão poder
voltar para suas casas no horário certo, após 8 horas de trabalho contadas no
relógio. E, assim, vão poder cuidar de seus próprios filhos, da sua própria
louça, da sua própria vida. E mais: se quiser vão usar as horas que restam do
seu dia para estudar e crescer na vida.
E enquanto isso, a classe média vai ter que aprender a trocar fraldas.
Que a louça não volta limpa pro armário sozinha. Que é chato passar roupa
social. Que o lixinho do banheiro precisa ser recolhido com frequência. E todas
essas coisas que qualquer pessoa que não viveu a vida toda com babás e domésticas
no encalço já sabe. E eu espero que também aprendam que limpar fraldas e conter
o choro do bebê faz parte da rotina de ser pai e mãe.
Espero que a nova PEC não seja vista apenas como um aumento de gastos
para nossa patética classe média. Espero que a profissão de babá e doméstica
seja abolida, extinta para nunca mais voltar. E que o Brasil seja como um país
de primeiro mundo: um país onde cada um limpa sua sujeira e educa seus filhos.
E, uma vez por semana, no máximo duas, contrate alguém que vai lá dar uma
ajeitada na sua casa, passar uma roupa, tirar uma poeira, e nada mais. Classe
média, vocês vão ter que ariar suas panelas (e eu sinto uma alegria enorme ao
dizer isso!).
Espero que a nova PEC dê às crianças menos favorecidas mães presentes,
com condição financeira melhor e com mais tempo para seus filhos. Que essas
mães possam trabalhar para viver e não para sobreviver. Por que só assim elas
vão conseguir ganhar seus filhos da rua, do tráfico e da violência.
Espero que ter uma doméstica, babá e diarista seja mesmo caro, muito
caro! Porque é assim que essas mulheres terão um salário digno do quanto elas
trabalham. Porque o nome disso é igualdade social. É a gente poder não ter uma
doméstica que ganha tão pouco e um engenheiro que ganha muito, muito mais (só
porque sentaram no banco de uma escola mais vezes). Um engenheiro vai ganhar
mais que uma doméstica em qualquer parte do mundo, obviamente. Mas não deve
ganhar muito mais como acontece no Brasil para que a gente consiga ter
igualdade social – ou chegar um pouco perto disso.
Por fim, falo do machismo. Não vou olhar estatísticas, porque nem
precisa. Um número superior a 90% de domésticas e babás certamente são do sexo
feminino (atividade doméstica e da criação dos filhos são obrigação das
mulheres e blábláblá). E essas
mulheres foram profissionalmente discriminadas até hoje. Em 2013 essas mulheres
ainda ganhavam tão pouco, não tinham direitos trabalhistas e arrisco dizer que
em alguns casos o regime de trabalho e as condições são quase escravocratas.
Dormir no trabalho num quartinho minúsculo e abafado seis dias por semana, sem
direito a quase nada. Que outro tipo de profissional se sujeitaria a isso?
Engenheiros, médicos, publicitários, administradores... quem?

Os filhos dessas domésticas e babás têm pais, é claro. Mas quantos pais
dessas crianças vocês conhecem que suprem a falta das mães? Enquanto elas estão
lá, dormindo na casa dos “patrões”, quantos pais se fazem presentes em suas
casas? Quantos pais ajudam a fazer a lição de casa? Muitos deles nem se quer
registraram o filho. Não vivem mais com a mãe dessas crianças. Negligenciam os
filhos de todas as formas.
Enquanto isso, os pais “patrões” estão por ai, querendo pagar para
alguém trocar as fraldas que eles deveriam trocar. Dar a papinha, ensinar a
lição, ver um filme junto. Lavar os pratos que eles sujam e trocar o papel
higiênico quando acaba. Portanto, espero que a PEC traga também luz a estes
pais. Ser pai e ser homem é isso: participar da vida do filho e de toda rotina
da casa.
Que cada vez mais domésticas e babás se tornem diaristas que cobram
caro, trabalham cinco ou seis vezes por semana como eu e você. Para que elas
cuidem de suas vidas e que a nossa classe média aprenda a cuidar da própria
vida.
Durante todo o tempo escrevi patrões entre aspas. É só para deixar claro
o quanto essa palavra é ridícula e nos remete à escravidão. Desconheço
profissionais que chamam seus chefes de patrão. Aliás, hoje nem é chefe mais, é
“gestor”. Justamente porque ninguém gosta de se sentir diminuído.
P.S.: Eu sou filha de pais trabalhadores que
lutaram muito para sustentar a mim e a minha irmã. Minha mãe trabalhou até o
sábado pegando três ônibus para ir e três para voltar do trabalho como
vendedora em um shopping zona sul. No domingo pela manhã eu nasci de uma
cesariana. Quatro meses depois ela voltou ao batente, e eu fui para a escolinha.
Meus pais se revezavam entre levar/buscar/cuidar. Eu não cresci traumatizada
por isso, mas tenho um puta orgulho da história dos meus pais e da batalha que
eles travaram para me criar. Eles já trabalharam viajando Brasil afora, em
casa, longe de casa, enfim: mas sempre fizeram questão de ser pais no sentido
mais estrito da palavra. (Tudo isso que eu disse só foi possível porque ao lado
da minha mãe eu tinha um pai presente. Que sempre entendeu que tarefa doméstica
é obrigação de todo mundo que mora na casa. E que criação de filho é obrigação
de mãe e de pai, igualmente).
P.S.2: Durante uma curta fase de nossas vidas tivemos uma empregada
doméstica (odeio essa expressão). E ela tinha carteira assinada, 30 dias de
férias e nunca trabalhou finais de semana e feriados. Hoje, tenho uma diarista
uma vez por semana, devidamente registrada. E torço para que continue assim.